O Quebra-Cabeça – do livro ANDROGONIA – O QUE O HOMEM É. Swami Sarvananda

            Esta é uma ocorrência verdadeira vestida de conto. É meu conto, embora possa ser seu conto, como é, com certeza, de muitos. Desde que estou lembrando, existo sobre uma ampla área na qual me vejo ter estado desde sempre. Uma vez ela me parece , de sumir, estreita, outra tão ampla que não lhe enxergo os limites. Por vezes nela reina luz enceguedora, luz que provém de lugar nenhum, inundando-a por inteiro, eu sentado, agora, em Sarvamudra; outras vezes, tudo nela está envolto em penumbra mortiça, quando minha vontade é de esconder, de sumir,de desaparecer.

           Mais freqüentemente, porém, brilha um franco dia de sol. Aliás, neste lugar estranho não há lugar para a escuridão da noite, ela só aparece nos meus sentidos quando meu ciclo vital desce, fazendo surgir a rara necessidade de dormir. Desde algum ponto acima da minha cabeça, de tempo em tempo, pedaços de “cacos”, feitos de algum material que tenho identificado com algo parecido aos quebra-cabeças, da qualidade dos que como menino gostava de juntar, peça por peça, para finalmente e paulatinamente fazer surgir uma bela paisagem.

          Estes cacos de quebra-cabeça caíam no meu espaço desde os primórdios – memória ancestral que às vezes sinto a necessidade de descobrir de onde, e QUEM os manda – pedaços irregulares e coloridos, nunca iguais a qualquer outro como formato e coloração. Sou capaz de permanecer horas a fio olhando para a abóboda na esperança de descobrir este mistério, até desistir com dores no pescoço. Uma e outra vez tenho a fugaz percepção de algo parecido a um alçapão que se abre na abóboda, instantaneamente, a deixar cair mais um destes “cacos”, junto a ele surgindo uma fugaz e instantânea claridade de cor indefinida, sem perceber maior ruído, senão apenas o suficiente para me servir de alerta.É uma situação estranha: como menino já me sabia ali, e muito antes ainda, vagando sobre o mesmo espaço, parecendo-me ter eu surgido ali há milhões de anos.

         Habitualmente solitário, recebo às vezes minhas visitas, queridos amigos do passado, visitas durante as quais o tema favorito são os cacos, deles, e os meus, do mesmo modo como antigamente conversávamos entre nós, a exibir os selos raros da coleção bem cuidada no álbum. Outra coisa que me intriga é o tempo, que nunca é o mesmo, por vezes parecendo correr loucamente e outras vezes os minutos parecendo intermináveis, tal como são os dias dos meninos que querem crescer, sendo este outro tema que discutimos, meus amigos e eu. A fixação nos cacos passou a fazer parte definitiva da minha natureza, como principal tema de pesquisa e de meditação, com a qual surgiu paralelamente o natural prazer de jogar.

        Assim, procuro adivinhar a hora exata da queda do próximo caco e, quando o tenho nas mãos, procuro desenvolver um novo sentido, o de intuir, procurando acertar a direção certa do lugar ao qual pertence no quadro geral. Com este treinamento, que ao mesmo tempo é uma disciplina que abarca o físico, a mente e a sensibilidade de percepção, surge a Inspiração, que sempre peço com a qual procuro antecipar o depositar o caco no grupo da imagem à qual pertence. Este treinamento me proporciona grande prazer interior e razão renovada para agradecer a colaboração da Mãe Providência.

       O hábito já instalado, o da previsão, ao qual dou grande importância, tem fixado no meu ser a capacidade da intensa concentração, que freqüentemente se torna meditação de olhos abertos, e que nas madrugadas das minhas noites internas, na hora da prece coletiva, durante a qual invoco reverentemente os Grandes Seres Universais, cito seus Nomes, o que me permite às vezes mergulhar na Luz Transcendental.

       Ao mesmo tempo, estou desenvolvendo o hábito de adivinhar de qual área da abóboda cairá o próximo caco, para assim poder aumentar mais rapidamente o crescimento dos conjuntos que se estão formando em diversas partes da minha área de vida, ilhas feitas de cacos, cada vez procurando prever a mensagem integral e final da multifacetada paisagem, mistério que me persegue deste os tempos que se perderam no passado, a me devolver as lembranças que surgem fugazes, entre névoas em constante movimento. Assim, certa vez, veio a imagem de um homem alto, de barba vermelha, navegando pelo rio Nilo em um barco de juncos.

     E, nitidamente, um menino judeu vestido de túnica clara, num templo de magníficas colunatas e esfinges, junto a outros meninos de mesma idade, sob os cuidados de um preceptor jovem e esguio, de sobre lábio proeminente. Ou, um homem maduro e de barba, que fazia questão de conduzir água desde um lugar bem longínquo para a cidade, por cima de formidáveis aquedutos de pedra que, para este fim, ele estava construindo. Ou um jovem cavaleiro de lança e escudo a treinar a arte da guerra. E, mais claramente, um fidalgo que viajou de um país de neves para outro, onde o povo cortava as cabeças dos seus reis.

      Outra vez, um monge sorridente de cabeça raspada e redonda, cor azeitonada, vestido com panos cor abóbora, a caminhar, ostentando um fulgurante sol branco no corpo entre umbigo e coração. Sempre gostava de sonhar, quando nestes sonhos, acordado de olhos abertos entrevia passado e futuro, o que me inquietava, por nada disso entender.A mente está constantemente atenta aos cacos que caem, os que me parecem oráculos misteriosos, partículas de uma verdade desconhecida que me atordoa e me atraí, ao mesmo tempo. Custava como me custa ainda, distinguir onde começa e onde termina a realidade que pertence ao Passado e ao Futuro, que me parecem interligados.

     E quando, durante estas meditações internas, ao procurar penetrar as névoas do amanhã, mais um caco cai com som discreto, a me puxar fora dos devaneios, faz-me pular sobressaltado em pé para catá-lo e verificar de novo o que já sabia que nunca um caco é igual, em formato e em cor, a qualquer outro dos que estavam espalhados no chão, imãs atraídos pelo grande quebra-cabeça que se funde cada vez mais com minha própria vida. Até este momento, ainda meu coração se acelera ao levar cada novo caco ao qual pertence, tentando completar mentalmente a grande e misteriosa imagem que está surgindo lentamente no espaço que ocupo.

      A ansiedade de descobrir a imagem total e final que este espaço ainda me oculta, estou certo que será o mais belo de tudo que eu possa imaginar, empolga-me e não me deixa descansar. Com o coração pulando no peito, aumenta a inquietude quando um caco cai mais freqüentemente, então corro com ele na mão, na tentativa de descobrir a qual grupo de cacos do conjunto se encaixa.

   Assim, e lentamente, vejo os grupos de cacos formando imagens incompletas e intrigantes. Um me parece ser parte de um cavalo cor de pinhão maduro, ou de uma suave nuvem que passeia languidamente no céu da madrugada; ou uma crinolina se esgueirando em movimento brincalhão a fugir do alcance da mão desejosa, ou como aquela vez, quando fiquei apavorado com uma feia mancha de sangue coagulado ao lado de uns tufos de capim verde, como se alguém tivesse levado ali uma punhalada no coração. Uma coisa está certa: à medida que o tempo, inseguro e vacilante, passa, a ansiedade me possui mais poderosamente.

    Pego-me em flagrante a olhar esbugalhadamente para o mistério que, na forma de abóboda que muda constantemente de cor e de textura, cobrindo meu espaço, a lhe pedir com o coração selvagem que os cacos sejam mandados mais freqüentemente . Meus descansos de outrora diminuíram com o aumento da ansiedade, e há tempos em que as poucas e raras horas de sono são interrompidas pelo discreto clic a surgir em algum canto do espaço que, quanto mais ansioso sou, mais infinito me parece ser na sua extensão. Ultimamente, e junto com as instantâneas aberturas do alçapão que vigio, acompanho a luz delicada que vai secundando cada caco, e que nunca se abre no mesmo lugar, escuto o que me parece ser um suave e angelical coro de vozes femininas de canto tão sutil, e celestial beleza, que faz parar meu coração, dando-me saudades do futuro. Mas em vão tento reter o ritmo da combinação das melodias vocais, as quais me deixam sonhar com um mundo irreal que não pode existir por aqui.Faz um pouco atrás, consegui adormecer, exausto, profundamente.

      Não sei dizer se minutos ou dias, quando, acordando, vi ao meu lado três jovens e gentis violinistas com seus belos instrumentos nas mãos, e afiná-los, e com os quais passei a dialogar a respeito da excelsitude do violino, que considero o mais perfeito instrumento musical. Sorridentes, me diziam que a mais importante corda das quatro é a terceira. E para demonstrar o que diziam, retiraram a terceira corda dos seus violinos que, com isto, se tornaram inutilizados. Mas logo as repuseram, e após os afinarem de novo, um deles passou a tocar com celestial perfeição o solo do Concerto em Re para Violino e Orquestra de Beethoven, que por longo tempo depois continuei escutando, perseguindo, de olhos abertos, e quase sem respirar, ambas as mãos sobre o coração.

     Com o que, a ansiedade e o cansaço tinham desaparecido por completo. No chão, ao meu lado, um pedaçinho de papel que trazia um número: 17.Esta visita, que não sei bem precisar se era um sonho ou a realidade tangível, permanece viva e indelevelmente gravada na memória, a me dar paz e contentamento no coração.E os clic dos cacos que estou escutando, passam a surgir agora, em intervalos mais regulares e apressados, o que aumenta meu ritmo de vida, também.Com o que o tempo, que tanto me ilude, passou a ter uma estranha intensidade que não sou capaz de descrever.
 
     É como um “algo muito devagar”, mas, ao mesmo tempo e para minha surpresa, que fez os cacos caírem multiplicando-se mais rapidamente do que ultimamente, produzindo um sentir que interpreto com “concentrando o tempo do relógio” sem que seja eu capaz de perceber como, e porquê, lembrando-me vivamente o treinamento de duplicar o que faço e como o faço, comandado por meu Mestre, ainda no Ashram, a me dizer: “Faça-o com a mesma perfeição na metade do tempo!” – algo a ter com o apanhar e colocar os cacos em menos tempo e com maior perfeição nos seus lugares, a completarem, aumentando as já grandes áreas do meu espaço, revelando agora estonteante beleza e aplastante sofrimento, que tenho vivido, e com o qual me sinto identificado.

     A ansiosa necessidade da Busca da Razão das Coisas voltou, mas não mais tão exacerbadamente. A certeza que algo, NOVO, misterioso, está acontecendo, ou melhor, que alguém está de olho em mim, passou a ser uma percepção constante. Passeio de mãos nas costas, a olhar as diversas áreas cobertas por grandes manchas de cacos coloridos, agora quase se tocando, e deixando a imaginação a trabalhar criando intuitivamente a provável imagem total da área.Foi numa dessas, como por acaso, que percebi a existência de outras áreas, vizinhas, cuidadas por gentes das quais algumas conheço bem, e outras menos.

      Alguns deles, mergulhando na dúvida da rotina, na semi-escuridão que eles próprios se criaram; outros começando a se entusiasmar com as imagens ainda incompletas feitas pelos cacos que ali estão caindo dos seus alçapões particulares, e outros, que me parecem bem mais adiantados na estruturação dos seus espaços vitais. A presença dos vizinhos me dá, agora, novo ânimo; passei a me comunicar, alternadamente, com cada um deles, para trocar ideias e experiência.

      Com o que a solidão, tão conhecida, que apesar do aumento da intensa atividade que toma meu tempo, e que ainda por vezes me assola, tem diminuído muito.A partir deste último episódio tenho passado, durante um tempo impossível de medir e de definir, a me sentir cada vez mais solidário com os meus vizinhos, agora tão próximos, e com os quais me estou comunicando telepaticamente. Minha área parece ter diminuído mais ainda, sem deixar por isso de ser incompleta, mas que agora posso abarcá-la visualmente e com facilidade desde qualquer ponto onde estou parando a olhar, procurando descobrir o que ainda falta para ser completado pelos cacos.
 
      Como Conhecedor desta mudança, Quem está do outro lado da abóboda que tudo cobre, passou a acelerar a emissão dos cacos, o que me faz prever que, dentro de mais um pouco, a área integral do Grande Quadro estará completada.E foi o que, pouco depois, ocorreu de repente.Foi de supetão, quando, e pela primeira vez, consegui abarcar a imagem integral do meu Espaço, completamente preenchido por inúmeros cacos. Meu coração parou de bater: lá estava em relevo tri e quadridimensional a totalidade das minhas existências havida desde que fora criado, há milhões de anos, junto com, e ao mesmo tempo todos os meus irmãos e irmãs, podendo agora lembrar vivamente cada detalhe, cada acontecimento, viver cada erro e cada acerto, cada laço havido com grande parte deles nas diversas épocas e raças, tudo manejado pela Tríplice Lei, do Destino, do Livre Arbítrio, e da Providência, a qual, neste instante, e paralelamente, foi me abrindo as fronteiras do Tempo-Espaço, concedendo-me a LIBERDADE!Mas, no meio desta suprema vivência, ao abarcar o estupendo quadro, um choque: bem no centro do Quadro da Existência, uma falha. Uma falha desconcertante. Um oco redondo!

      Fora de qualquer padrão havido ou percebido ao longo dos passados. Se nenhum dos cacos, milhões deles, era igual a qualquer outro, e nenhum redondo, com podia ser que eu não o tenho percebido como espaço não preenchido?, e ainda: REDONDO!Procedi ansiosamente, palmo a palmo, na busca de um caco redondo, que devia estar caído, perdido em algum lugar da amplidão do espaço, despercebido. Certamente deve ter caído do alçapão durante um dos meus cochilos, sem eu escutar o característico clic. Mas nada. Repeti a busca começando pela parte oposta do Espaço, com maior atenção ainda. NADA! Permaneci estonteado, parado, durante um longo e indefinido tempo, feito estátua (lembrei dos inúmeros STOP! que comandei durante anos de TB). Mas, nada!Uma grande inquietação se apossou de mim. Era-me impossível afastar o olhar desta aberração, como passei a chamar oco redondo.

     Os poucos e breves períodos de descanso tenso e intenso, de meio sono, eram permeados por um mesmo pesadelo: profundos ocos negros, ameaçadores, dos quais me afastava a rodear as beiradas do grande espaço. Ao voltar a mim, exausto e deprimido, não fazia mais nada do que, de longe, olhar o misterioso oco, desejando que desapareça. Perdi o entusiasmo de abarcar com a vista a beleza e a perfeição da paisagem que criara durante o passado das minhas existências havidas.Durante minutos, ou horas – nem sei quantos eram – de cochilo sentado, continuei a olhar o Espaço, este se me apresentando agora como uma imensa e densa teia de aranha, no centro da qual havia uma grande e feia aranha negra de seis patas peludas, a me olhar, ameaçadoramente, imóvel e tremendamente viva, com seus olhos humanos.

        Ao voltar a mim, estas visões em nada melhoravam meu estado de perplexidade. Pele e ossos, a natureza aquecida pela febre que me consumia, tudo que eu prezava, ansiando e desejando, estava destruído. Meu orgulho perfeccionista estava pisado. Vivi o desespero de enxergar tudo que me era belo, perfeito e caro, coberto por uma montanha de lixo de defeitos, de imperfeição, que dentro de mim afloravam. Passado, presente e futuro, via-os todos como algo incompleto, feio; meu amor próprio e orgulho ressuscitado, estava feridos. Toda aspiração elevada tinha morrido: afinal, parece que de nada valeu o esforço gasto durante milhões de vidas, quando me fora prometida a Perfeição final, ao mesmo tempo que a todos os meus irmãos e irmãs, no ato da Criação.

       Desejei morrer para sempre.Entretanto, um resto de instinto de conservação subsistiu. Com o olhar turvo e febril espiava O OCO que me estava olhando, agora me atraindo. Como antigo caçador de Mistérios, ainda subsiste em mim um grão de teimosia, a me impelir com fatal curiosidade a conhecer “o que é Aquilo” que tinha destruído todas as minhas esperanças, todos os meus sonhos, com a intenção de descobrir algo que pudesse justificar meu desastre. De pouca distância verifiquei,com nojo, que o Oco estava aumentando e diminuindo ritmadamente, como o respirar de um ser vivo e medonho. Recuei depressa para mergulhar de novo num letargo de total e perplexa depressão.Lembro que fui sempre um homem teimoso, corajoso, intrépido mesmo, não disposto a abandonar coisa nenhuma nem empreitada alguma, – e insisti. Insisti diversas vezes, nem lembro quantas, a olhar. Queria conhecer o que estava me destruindo.

       Não tenho receio de dar o braço a torcer. Aprendi com meu Mestre, a quem meu coração agradece todos os dias de minha vida, que é preciso terminar o que comecei. Enquanto isto, o Oco continuou a ter a mesma doentia atração sobre mim. Senti-me como a mosca que, teimosamente, gira revoloteando, enfeitiçada, em torno da teia com a horrorosa aranha negra no meio, a me espreitar.Em uma das vezes que tive a intrepidez de me aproximar um pouco mais, a olhar para dentro do Oco, verifiquei surpreso que as funduras do oco não são negras, senão da cor da noite infinita sem lua, um “azul-índigo” coalhado por miríades de estrelas.

       O que me fez parar atônito, e algo em mim se acalmou. A perplexidade foi cedendo, e a respiração deixou de ser ofegante, mais tranqüila, embora o medo de cair no oco, persiste.Em meio da vigília doentia, exausto, muitas imagens passaram-me pela mente, os pensamentos se atropelavam desordenadamente. Não tirava os olhos do Oco, que volta e meia aparecia de novo como o olho vigilante da horrorosa aranha negra a me fitar. E lembrei-me de Kâli, a Negra, de quatro braços portadores de armas mortíferas, enfeitadas por um colar de caveiras pendendo sobre seu busto nu, a mesma que o Bem-aventurado Senhor, Bhagavan Ramakrishna, estava clamando durante dez anos, até que Ela, finalmente, manifestou-se, como Mãe Universal, mostrando-se em todo seu esplendor luminoso, na qual Ele, o Bhagavan, se perdeu em um estado de Amor Cósmico que mortal algum conhecerá. Até o momento em que, num impulso fatal feito de pavor, de descuido, e de Amor total, perdi o equilíbrio para despencar nos braços amantes da Grande Virgem Cósmica rodeada do Universo de bilhões de estrelas…